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Um anel quociente conveniente

Há muita desconfiança quando se fala em números complexos. Muito disse se deve à mística do nome imaginários. Esse nome confunde: parece sugerir que o que está sendo discutido não existe na realidade. Se já faço pouco números reais, imagine dos números imaginários.

Apesar do nome, quero te mostrar que esses números são bem concretos. A existência de um objeto cujo quadrado é negativo surge de forma natural na teoria de aneis e corpos. Estamos sempre nos perguntando quais propriedades um anel possui e, muitas vezes, as resposta aparecem ao analisar os polinômios com coefientes nesse anel.

Considere um corpo \(\mathbb{K} \) munido das operações soma \(+ \) e produto \(\cdot \). Denotamos por \(\mathbb{K}[x] \) o anel de polinômios com coeficiente em \(\mathbb{K} \), isto é,

$$ p \in \mathbb{K}[x] \iff p(x) = a_0 + a_1 \cdot x + … + a_n \cdot x^n =\sum_{i=0}^n a_i \cdot x^i \text{, onde } a_i \in \mathbb{K}, \forall i=1,2,…,n, \text{ para algum } n \in \N \text{.} $$

Segue da teoria que, como \(\mathbb{K} \) é corpo, \(\mathbb{K}[x] \) é um domínio de ideais principais. Isto é, para todo ideal \(I \subset \mathbb{K}[x] \) existe um polinômio \(f(x) \in I \) tal que \(\left<f(x)\right> = I \).

Agora, considere \(\mathbb{K} = \R \), o elemento \(f(x) = x^2 + 1 \in \R[x] \) e o ideal \(I \) gerador por \(f(x) \):

$$ I = \left <f(x)\right> = \lbrace g(x) \in \R[x] \thickspace \vert \thickspace g(x) = f(x) \cdot h(x) \text{ para algum h(x) } \in \R[x] \rbrace $$

Vejamos o que acontece no quociente \(\frac{\R[x]}{\left<f(x)\right>} \). Dado o elemento \([x] \in \frac{\R[x]}{\left<f(x)\right>} \) temos:

$$ [x]^2 = [x^2] = [x^2 - f(x)] = [x^2 - (x^2 + 1)] = [x^2 - x^2 - 1] = [-1] $$

Ou seja, no quociente existe um elemento tal que seu quadrado é \(-1 \). Esse elemento é a classe do polinômio identidade.

Além disso, como o grau de \(f(x) \) é dois, toda a classe admite um representante de grau no máximo 1. Em outras palavras, todos os elementos do quociente são da forma \([ax+b] \) para algum \(a,b \in \R \). É fácil ver, pelo isomorfismo

$$ \phi: \frac{\R[x]}{\left<f(x)\right>} \to \mathbb{C} \text{, dado por } [x] \mapsto i \in \mathbb{C} \text{,} $$

que

$$ \frac{\R[x]}{\left<x^2 + 1\right>} \cong \mathbb{C} \text{ e } \phi([a+bx]) = a+bi, \forall a,b \in \R $$

O polinômio \(f(x) = x^2 + 1 \) pode parecer tirado da cartola, mas na verdade surge naturalmente como um polinômio irredutível de grau 2 em \(\R[x] \). Para mim, a construção dos reais a partir dos racionais é de longe mais imaginária do que esta apresentada.

Felipe Monteiro Kiotheka
Autor
Felipe Monteiro Kiotheka
Discente de bacharelado em Matemática na UFPR