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Os paradoxos de uma lógica axiomática e a polêmica do Axioma da Escolha

PETiscos Matemáticos

Na matemática, axiomas são proposições fundamentais aceitas como verdadeiras, sem necessidade de demonstração. Eles constituem a base sólida sobre a qual toda a estrutura lógica da disciplina é erigida, permitindo o desenvolvimento sucessivo de proposições, teoremas e corolários cada vez mais complexos, sempre assentados nesses blocos primordiais. Assim, a matemática se configura como um sistema rigoroso e internamente coerente, ainda que as chamadas “verdades” que a sustentam sejam, em última instância, escolhas deliberadas feitas para garantir a consistência desse edifício lógico. O Axioma da Escolha, tema central deste texto, representa um dos exemplos mais fascinantes de como a adoção de determinados postulados pode transformar profundamente a paisagem matemática — e de como a intuição nem sempre é o guia mais seguro para a definição dessas verdades fundamentais.

A origem do Axioma da Escolha remonta ao trabalho de Georg Cantor, matemático alemão do século XIX e figura central na formulação da teoria dos conjuntos, sendo pioneiro na introdução da noção de infinitos hierarquizados. Profundamente influenciado por sua fé cristã, que lhe inspirava a crença em uma harmonia subjacente ao universo, Cantor sustentava que todo conjunto poderia ser bem ordenado — ou seja, que seria possível dispor os elementos de qualquer conjunto de tal maneira que cada subconjunto possuísse um menor elemento. Essa convicção o impulsionou a uma vida de pesquisas dedicadas ao princípio da boa ordenação, princípio que ele acreditava ser válido mesmo para conjuntos como o dos números reais. No entanto, sua ideia encontrou forte resistência no meio matemático de sua época, sendo considerada por muitos como profundamente contraintuitiva e até mesmo metafisicamente insustentável. A tensão atingiu um ápice em 1904, durante o Congresso Internacional de Matemáticos, quando Julius König afirmou ter encontrado uma prova refutando o princípio da boa ordenação proposto por Cantor.

A visão de Cantor, entretanto, encontrou respaldo mais sólido alguns anos depois, com o trabalho de Ernst Zermelo, que, coincidentemente, estava presente na plateia durante a exposição de König e ficou profundamente impressionado com a controvérsia. Interessado nas implicações filosóficas e matemáticas do trabalho de Cantor, Zermelo dedicou-se a formalizar o princípio da boa ordenação. Ao analisar cuidadosamente o tema, ele percebeu que esse princípio equivalia, na prática, à aceitação de um novo postulado até então não explicitado: o Axioma da Escolha. Foi assim que Zermelo o formulou de maneira clara e rigorosa, inaugurando um dos debates mais intensos e duradouros da história da matemática, ao mesmo tempo em que fornecia uma das ferramentas mais poderosas e versáteis para a construção teórica subsequente.

O Axioma da Escolha estabelece, em essência, que, dada qualquer coleção de conjuntos não vazios, é sempre possível selecionar exatamente um elemento de cada conjunto, mesmo quando essa coleção for infinita. Embora sua formulação pareça simples e até intuitiva, a proposição gerou — e continua gerando — calorosos debates. Muitos matemáticos consideram o axioma indispensável, pois ele permite demonstrações elegantes e resultados de grande profundidade, como o teorema que assegura que todo espaço vetorial possui uma base, independentemente de sua dimensão. Outros, contudo, questionam sua validade, alegando que o axioma conduz à aceitação de entidades cuja existência não pode ser explicitamente construída, violando assim certos princípios construtivistas e abalando a intuição que tradicionalmente orienta a prática matemática.

Essa controvérsia torna-se ainda mais aguda diante dos paradoxos que emergem do Axioma da Escolha, sendo o mais célebre o paradoxo de Banach-Tarski. Esse resultado, surpreendente e até desconcertante, demonstra que é possível decompor uma esfera sólida em um número finito de partes, que podem ser reorganizadas — exclusivamente através de movimentos rígidos, sem alongamentos ou compressões — de modo a formar duas esferas idênticas à original. Embora matematicamente correto dentro dos sistemas lógicos que admitem o Axioma da Escolha, esse paradoxo desafia de forma profunda a nossa intuição física e a noção de conservação de volume, ilustrando como a aceitação de um axioma aparentemente inofensivo pode conduzir a conclusões extraordinariamente contraintuitivas.

Assim, o estudo do Axioma da Escolha revela uma lição fundamental: decidir o que deve ou não ser erigido como axioma raramente é um processo natural ou evidente. Resultados que, à primeira vista, parecem intuitivos podem, na verdade, conduzir a confusões e a paradoxos profundamente desconcertantes. Não obstante essas controvérsias, a maioria dos matemáticos contemporâneos aceita o Axioma da Escolha como parte integrante e indispensável do arcabouço teórico da matemática moderna. E, para que não paire qualquer dúvida — e talvez como uma leve provocação diante das perplexidades que esse axioma suscita —, este que vos escreve também se declara, sem hesitação, um fiel adepto do Axioma da Escolha.

Lucas Xavier
Autor
Lucas Xavier
Discente de bacharelado em Matemática na UFPR